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todayAbril 4, 2021 69 10 3
Por Mário Beja Santos
É uma peça de teatro, o seu autor é um dos mais renomados escritores da Guiné-Bissau, engenheiro eletrotécnico, empreendedor, associativista dinâmico. As suas tramas centram-se no quadro colonial, nas sanhas do poder (tem uma peça onde alude a Macbeth e os triunfos sanguinários para ganhar o trono) e nunca se escusa a dizer que escreve sobre um país à procura de si próprio.
Kangalutas, por Abdulai Sila, Ku Si Mon Editora, 2018, põe em cena três mulheres, uma delas vem de Portugal à procura da filha guineense do seu falecido marido que não a esqueceu no testamento; as outras duas, a filha do branco e a mulher repudiada pelo branco, que por ele fora muito amada, vão terças armas, desconfiadas ou mesmo desinteressadas daquela generosidade da última hora. Não é uma tragicomédia, mesmo que haja, como há, apontamentos dignos de farsa; é uma dramaturgia lírica, tem três mulheres em cena, entre lágrimas e suspiros vão barafustando entre si até se chegar a um desfecho desconcertante: aquela Guiné que procura a democracia, o desenvolvimento e a justiça leva à mobilização daquelas três mulheres, a causa delas não será uma herança baseada numa história do passado colonial, mas o futuro da liberdade daquele país em permanente tormenta, desorientado e sem mobilização coletiva. O título prende-se com as vicissitudes do amor, a multiplicidade dos reveses, os danos por reparar.
A branca chama-se Mariana, veio até à Guiné dar cumprimento a um desejo do falecido marido; a filha chama-se Mbissalangani, acha que pai é uma coisa que não existe, diz sentir-se muito bem no seu país, desconfia de tal herança, não aceita que a tratem por ingrata, parece estar literalmente nas tintas para a promessa do defunto pai de que Mariana é porta- voz; e temos Mariama, a mãe de Mbissalangani, a mulher amada por Luís, que a repudiou. Bem áspero é o primeiro encontro entre Mariama e Mariana, a guineense está determinada: “A filha é minha, só minha.
Cuidei dela sempre sozinha, sem a ajuda de ninguém, e agora que ela criou asas e está pronta para voar sozinha, eis que aparece do nada uma milagreira a reivindicar direitos de propriedade, de paternidade ou lá o raio que o parta!” Mariama tem os seus trunfos, era contatada pelo Luís, surpreende Mariana.
Mãe e filha procuram entender o que na verdade trouxe Mariana à Guiné, a mãe diz à filha que deixou a branca arrelampada, que nem pensasse em tirar-lhe a filha, rogou-lhe pragas, a mãe é insidiosa, diz à filha que peça a Mariama o testamento, que deve mesmo exigir as contas bancárias, o clima de intriga está montado, haverá discussão brava entre Mbissalangani e Mariana, ainda não sabemos o teor do testamento, Mariana quer apressar o regresso e levar a filha de Luís, insiste que é preciso um visto e dá a saber que já bateu à porta do consulado, é nisto que se fala na preparação de uma campanha eleitoral para breve, Mbissalangani tem partido político, irá participar, sonha com um país próspero, justo, onde o precário não seja o pão nosso de cada dia.
Depois, Mbissalangani finge ceder junto da mulher de Luís, mas exige-lhe um contrato, prepara uma chantagem junto do responsável pela máquina eleitoral, a branca será o isco, assim se espera obter a vitória do seu partido, adulterando a contagem dos votos, Mariana será o isco, a sedutora… No final haverá vitória, e nós, leitores ou espetadores, até poderemos questionar se não foi a um preço aviltante. A relação entre aquelas duas rivais que amaram Luís estreita-se, Mariana vai mesmo viver para a casa de Mariama, Mbissalangani, com modos sinceros, começa a estimar aquela rival da sua mãe que pretendia vir buscá-la. O plano para que o tal partido venha a ter acesso a uma adulteração dos dados que lhe permita uma vitória inequívoca e até consensualmente aceite entra em marcha, haverá uma intrusão no computador, lança-se um vírus destinado a sequestrar informação do partido rival, há mesmo promessas de Mbissalangani de oferecer computadores àquelas duas infoexcluídas.
E chega o dia da vitória, a jovem anuncia que a juventude acordou, que o país está heroicamente a renascer das cinzas, o que vai a passar a contar é a competência e a dignidade. Algo de estranho, talvez contraditório se irá passar, Mariama e Mariana anunciam ter tomado uma decisão, nada de ir ao consulado, o visto que se lixe, a herança perdeu sentido, a viagem até Portugal fica para a próxima, quem veio para anunciar, e bem contrafeita vinha, dá a saber que é ali na Guiné que se sente útil, agarrada a uma causa. São vicissitudes da vida. Luís ter-se-ia arrependido de ter deixado uma filha ao abandono, e queria agora recompensá-la, são kangalutas, o destino virou-se do avesso, quem veio anunciar a herança, e que diz vezes sem fim que está farta daquela terra grita bem alto que se há uma juventude que quer limpar o país da corrupção e do desdém internacional, ela fica, tem uma causa, aquele país precisa dela. Será metáfora, alegoria, parábola? A ferida do passado colonial sarou, chegou a hora da reconciliação, na cena teatral aquelas mulheres de dois países mostram ao público que estão de mãos dadas. É esta a bela lição para guineenses e portugueses que o grande escritor Abdulai Sila nos oferece.
Para saber mais, recomenda-se o artigo de Ianes Augusto Cá e Maria Sousa Assis, intitulado “Kangalutas e espinhoso mistidas: estético e político nas peças de Abdulai Sila”: Link
publicado pela UNILAB – Universidade de Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira.
Por: mileniofm
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